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Feb 10, 2021 - 7 minute read

Funerárias contra norma que permite abertura de caixões

Aplica-se à Região a atualização da norma da Direção-Geral de Saúde que permite a visualização do corpo por alguns instantes durante uma cerimónia fúnebre. Insatisfeitas com as novas regras, as agências funerárias pedem consideração pelo setor que exerce em constante contacto com mortes por covid-19. Foi com dúvidas, medos e revolta que as agências funerárias receberam as novas recomendações da Direção-Geral de Saúde (DGS) após ter sido atualizada a norma relativa aos procedimentos ‘post mortem’ no contexto de pandemia da covid-19.

A tolerância está ao nível da indignação entre quem trabalha lado a lado com a morte numa altura em que os números batem recordes. Por um lado, os agentes funerários são quem mais sente na pele o quão dolorosa é a despedida de um ente querido com os olhos postos numa urna fechada e distante, sem margem de oportunidade para um último adeus. Por outro, apesar da delicadeza que é imperativa em contexto laboral, estes trabalhadores não aceitam que a sua segurança seja posta em causa sem qualquer consideração para possibilitar que as despedidas de quem já partiu sejam feitas com dignidade.

A atualização da norma da DGS passa a autorizar agora que, numa cerimónia fúnebre, seja permitida a visualização do corpo “desde que seja rápida, a pelo menos um metro de distância”, ainda que a autoridade aponte que o caixão deve preferencialmente manter-se fechado. A abertura da urna passa assim a ser autorizada “caso seja esse o desejo da família” e se “houver condições”, sendo que há sempre a possibilidade de o corpo ser visto através de caixões com visor.

“Em qualquer uma das situações, não é permitido tocar no corpo ou no caixão”, refere a norma que, na última segunda-feira, 8 de fevereiro, a Direção Regional de Saúde subscreveu através de uma circular normativa que define que se aplicam estas mesmas recomendações à Região Autónoma da Madeira.

É devido ao contacto entre os agentes funerários e o corpo que se instala a preocupação entre o setor. Isto porque para que o cadáver fique apresentável para uma eventual abertura do caixão, o mesmo tem de ser devidamente manipulado antes de uma cerimónia fúnebre, o que pode representar alguns riscos.

Ainda antes de a Direção Regional de Saúde ter comunicado oficialmente a adaptação das medidas da DGS à Região, o JM ouviu quatro agências funerárias - Freitas, Câmara de Lobos, Dionísio e Caniço - e as opiniões foram (quase) unânimes no que toca não só aos medos como também à revolta por se sentirem excluídos dos grupos cuja proteção contra o vírus é prioritária.

Recolha do corpo

Segundo o que apurámos na sequência dos contactos realizados, o procedimento realizado até à data envolve a recolha do corpo na morgue já dentro de um saco devidamente identificado juntamente com uma guia que indica a causa da morte e se esta se deu na sequência de alguma doença infeciosa. A partir da recolha, é função das funerárias a colocação do corpo numa urna que segue posteriormente para o crematório ou sepultura. Para o reconhecimento do corpo, há agências a encarregar-se, por iniciativa própria e se assim os entes desejarem, de tirar uma fotografia ao corpo e à identificação que este carrega para descansar os familiares dos falecidos.

Isso mesmo o faz Rita Dionísio, gerente da Agência Funerária Dionísio, que, apesar dos quase 30 anos a trabalhar neste meio, confessa que ainda não aceita bem a morte e que se sente de rastos por não poder proporcionar às famílias uma despedida condigna dos seus entes queridos. Contudo, não aceita as novas normas que admitem a abertura das urnas em funerais.

“Nós temos família em casa”

“É claro que todos têm direito a se despedir dos seus. Sinto-me triste por saber que as pessoas não se podem despedir com dignidade, e sempre que possível eu faço o manuseamento do corpo. Agora, se souber que aquele corpo é suspeito de ter o vírus, eu não faço. Eu e todos nós temos família em casa”, refere Rita Dionísio, que, com a experiência e conhecimentos que tem, acredita que a probabilidade de um corpo ser trocado na Madeira – como há relatos de ter acontecido no continente - é muito reduzida.

A gerente daquela agência situada na freguesia dos Canhas explica que há casos de óbitos ocorridos nos domicílios naquela localidade em que os corpos não chegam a ser transportados para o Hospital, mas sim diretamente para a Capela Mortuária dos Canhas, após autorização do pároco, sendo o evitar da deslocação do corpo para os serviços médico-legais uma recomendação da própria DGS. “Preparamos o corpo e fechamos a urna. Quem é que me garante que aquele corpo não tinha covid-19? O médico chega ali, alega causa normal porque viu no histórico a situação de saúde da pessoa, mas como é que têm a certeza de que essa pessoa não tinha o vírus? No caso de alguém acamado, pode até ter recebido visita de um familiar com covid-19 e não se sabe. Ninguém sabe e quem se arrisca é o agente funerário”, lamenta a mulher que não tem dúvidas de que nesta altura “todos os cuidados são poucos” e que as novas recomendações “não têm lógica”.

“Nem isto de dizerem que o corpo pode ser visto a um metro de distância faz sentido. Quem faz essas regras não faz ideia do que acontece num funeral. As pessoas, desesperadas e tristes, correm para acariciar o corpo e sentir o familiar pela última vez. E quem é que controla isso?”, questiona ainda a agente funerária, que sugere a utilização de uma tampa de vidro ou acrílico pela salvaguarda da saúde de todos.

Expostos a tudo

Sérgio Quintal, da Funerária do Caniço, quando contactado pelo JM, encontrava-se a aguardar a receção de recomendações das autoridades regionais, mas adiantou que as indicações emanadas pela DGS trazem “muitas repercussões”. “A identificação por parte da família requer a preparação do corpo, porque nunca o vamos apresentar no estado em que o encontrámos. Logo, nós ficamos expostos a tudo e mais alguma coisa, o que eu não concordo de todo”, afirmou.

A visualização de um corpo “é um procedimento que não faz sentido numa situação de pandemia. Tanto na Madeira como no continente será quase impossível abrir um caixão para a família ver”, disse ao JM fonte da Agência Funerária Freitas, que optou por não se identificar.

Opinião distinta tem Dinarte Rodrigues, da Agência Funerária de Câmara de Lobos, que está convicto de que “as funerárias estão preparadas, seja para abrir a urna ou não, com ou sem visor”, por assegurarem com regularidade a sua segurança através da utilização de equipamentos de proteção individual e desinfeção constante das urnas e de todo o espaço. “Se for para abrir a urna, não muda nada. Desde que as pessoas se coloquem a uma distância razoável e utilizem máscara, como já acontece, não há aqui uma grande diferença ao nível prático”, defende Dinarte Rodrigues, que irá aguardar por orientações das entidades competentes antes de proceder a qualquer alteração no funcionamento da sua agência.

 

Trabalhadores do setor funerário querem prioridade na vacinação

Se não há dúvidas de que a atividade do setor funerário é de primeira necessidade, o facto de os seus trabalhadores estarem diariamente em ambientes de risco é especialmente preocupante e exige mais atenção por parte das autoridades de saúde. As funerárias correspondem, na sua maioria, a empresas pequenas, sendo que a infeção de um elemento e consequente isolamento de todos os seus trabalhadores poderia significar pelo menos duas semanas com impossibilidade de realizar funerais. Por essa razão, dirigentes de associações representativas do setor ao nível nacional já defenderam a inclusão dos profissionais da área nos grupos prioritários de vacinação contra a covid-19, numa posição que é consonante com a dos agentes funerários da Região.

Rita Dionísio lamenta que “todo o mundo” fale dos trabalhadores na linha da frente no combate à covid-19, e “ninguém” se preocupe com os agentes funerários que “correm muitos riscos, principalmente ali na morgue, que está um caos”.  É por isso que reivindica que seja considerada prioridade na vacinação contra a covid-19, e até que as equipas do setor sejam chamadas a fazer testes de despiste com regularidade.

“A funerária é a última coisa em que as pessoas, e até as autoridades, pensam”, acredita Dinarte Rodrigues, que apesar de entender que existem profissões com um risco mais elevado de infeção, defende que deveria ser ponderado o caso dos agentes funerários. Nesse sentido, exemplifica: “os farmacêuticos, que começaram esta semana a ser vacinados, tanto podem ter contacto com um caso de covid-19 como podem não ter. Os funerários não escapam, vão ter contacto com certeza com corpos que faleceram com covid-19. As autoridades deviam analisar isso”.