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Apr 4, 2021 - 7 minute read

Projeto solidário está há mais de um ano a dar ajuda imediata

Há pouco mais de um ano, quando a pandemia chegou, muitas famílias se viram desamparadas, a maioria em situação de desemprego. Naquele momento, as associações que prestam ajuda a pessoas carenciadas começaram a arregaçar (ainda mais) as mangas e foram ao encontro dessas situações. Contudo, como o número de pessoas necessitadas cresceu de forma exponencial em poucas semanas, houve a falta de voluntários, sobretudo para a confeção de refeições.

Foi assim que, Carlo Martins, com mais quatro colegas do ramo da hotelaria – alguns desempregados e outros em ‘lay-off’ - decidiram criar o projeto social “Hotelaria madeirense ajuda a nossa ilha”, confecionando refeições para colmatar as falhas sentidas neste nicho.

Ao princípio, conta Carlo Martins, foram confecionadas 20 refeições, mas logo subiram para 100 na semana seguinte e 200 durante três meses. No início, as refeições eram feitas na Casa do Povo de Santo António, no Funchal, mas depois passaram para a Associação “Garouta do Calhau”.

Em julho, com a diminuição das pessoas que precisavam de refeições - até porque muitas voltaram a trabalhar - o projeto solidário de Carlo Martins entrou por outra vertente, readaptou-se e passou a entregar cabazes de alimentos, equipamentos e roupas às pessoas que solicitavam ajuda.

Desde outubro do ano passado que este projeto se assume como uma “task-force” de ajuda imediata para casos “extremos” de necessidade.

Os pedidos chegam das mais diversas formas. Partem de terceiros, isto é, de vizinhos, de pais, de filhos ou de amigos, mas também dos próprios.

 

São pedidos de ajuda, não só para comer, mas também para resolver problemas sociais, como por exemplo, casos de violência doméstica.

Quanto à a ajuda, essa, chega também de muitos lados. As redes sociais têm se revelado uma ferramenta importante já que, muitas das doações são feitas após as publicações com os pedidos que são deixados na página do projeto no Facebook.

Há casos que, considera Carlo Martins, são tão graves que não podem esperar pela burocracia muitas vezes imposta por algumas instituições. “A ajuda tem de ser imediata”, garante o responsável ao JM, recorrendo a um exemplo que lhe tinha passado pelas mãos ainda há poucos dias: “Conhecemos o caso de uma senhora, mãe de uma adolescente com deficiência mental, que só tinha em casa um quilo de arroz para comer, nada mais”.

Este caso, conta, foi exposto nas redes sociais e, em muito pouco tempo, uma seguidora da página se prontificou em ajudar e foi, ela mesma, entregar em mãos um cabaz com alimentos para 15 dias, à casa daquela mãe.

Um gesto que o empresário considerou importante, não só pelo seu altruísmo, mas sobretudo porque ajudou a mostrar a veracidade da situação.“Muitas vezes as pessoas desconfiam daquilo que é pedido, mas quando elas vão lá e veem, com os próprios olhos o grau de necessidade, as coisas são completamente diferentes”, assegura.

“Aquilo que está a acontecer é que as pessoas não querem ver”

Quando questionado acerca do impacto desta pandemia nas vidas das pessoas, Carlo Martins diz não ter dúvidas que o grande problema que se instalou na sociedade é que as pessoas não souberam se adaptar para a crise que aí vinha.

“Não houve um período de preparação”, atira o empresário, salientando que a perda repentina de rendimentos é uma espécie de ‘bola de neve’ que acaba por arrastar toda uma série de setores. E foi o que aconteceu.

O desemprego cresceu e há, efetivamente, mais pessoas carenciadas.

“Aquilo que está a acontecer é que as pessoas não querem ver”, afirma o empresário, responsável pelo projeto comunitário “Hotelaria Madeirense ajuda a nossa ilha” que, entretanto, refira-se, já ganhou o estatuto de instituição de solidariedade social, passando a designar-se brevemente “Um povo, uma ilha”.

“É mais fácil lidar dessa forma”, considera, frisando que até a própria solidariedade sofreu com a chegada da pandemia.

“Houve algumas associações que tiveram um papel positivo, mas houve outras que não e estão agora a entrar numa fase de desespero porque assumiram certas coisas que não deveriam ter assumido”, denuncia, sublinhando que aquilo que muitas vezes acontece é que “as pessoas só querem saber de números” e recorre a um exemplo: “Na cidade do Funchal assiste-se agora a uma ‘guerra’ entre a Câmara Municipal e algumas associações. É compreensível que a Câmara não queira dar dinheiro ou alimentos sem saber a quem está a dar. Imaginemos que há quatro associações e essas quatro associações apoiam a mesma pessoa. Isso não tem lógica nenhuma, declara, referindo que é aqui que “se vê a parte negativa do associativismo”.

Aliás, Carlo Martins entende que as associações têm de se adaptar a uma nova realidade. “O modelo de associativismo que está agora implementado está obsoleto”, considera, salientando que a única instituição que soube se adaptar à nova realidade foi o Banco Alimentar e que, no seu entender, “tem feito um trabalho espetacular”.

Neste contexto, afirma que o seu projeto é “completamente diferente”. Orgulha-se de não trabalhar sozinho e de poder contar com a ajuda de muitos para a concretização das suas ações.

Aliás, o que vai acontecer neste domingo de Páscoa é exemplo disso.

Cerca de vinte voluntários, entre os quais alguns empresários ligados ao setor da hotelaria, vão juntar-se, num espaço comercial do Caniço, para confecionar 115 almoços para serem entregues hoje ao domicílio, às famílias assinaladas.

 

Cozinha solidária é próxima meta

Neste caminho iniciado há pouco mais de um ano, Carlo Martins diz ter dois grandes sonhos para cumprir: numa primeira fase, a criação de uma “cozinha solidária” no Caniço, numa fase posterior, a construção de uma aldeia comunitária.

Com o primeiro projeto, o empresário quer criar um restaurante que, embora solidário, seja autossustentável através das receitas obtidas pelas refeições cobradas a quem as pode pagar. Quem tem dinheiro paga a sua refeição, quem não tem come de forma gratuita. “Ninguém saberá se aquele cliente está ou não pagar”, esclarece. O objetivo deste espaço passa também por poder servir gratuitamente pequenos-almoços a alunos carenciados, uma vez que a associação tem conhecimento de que há muitas crianças de Santa Cruz que continuam a ir com fome para a escola.

O segundo projeto, mais complexo na sua concretização, pretende juntar, num mesmo espaço, jovens com problemas e idosos.  A ideia é incutir-lhes objetivos de vida e fazer com que se sintam úteis.

“O futuro dos lares na Madeira terá de ser assim”, afirma, acrescentando que “tem de haver lares em que cada um se sinta útil e responsável por alguma coisa”.

Por enquanto, esta nova associação anda à procura de um espaço no Caniço para poder criar a sua própria sede já que, atualmente, o local que está a servir temporariamente de armazém para colocar as doações feitas são as antigas instalações da Casa do Povo do Caniço.

Se, antes desta pandemia, eram as pessoas com parcos rendimentos ou em situação de pobreza extrema que recorriam à ajuda das instituições de solidariedade social, de há um ano a esta parte são as famílias, da chamada “classe média” aquelas que mais têm batido à porta das associações.

 

Câmara de Lobos, Funchal e Caniço lideram pedidos

Se, antes desta pandemia, eram as pessoas com parcos rendimentos ou em situação de pobreza extrema que recorriam à ajuda das instituições de solidariedade social, de há um ano a esta parte são as famílias, da chamada “classe média” aquelas que mais têm batido à porta das associações.

Vêm envergonhadas e fazem-no, muitas vezes, em último recurso, quando já não conseguem mais. Muitas tinham vidas estáveis e financeiramente confortáveis. A covid-19 veio “roubar-lhes” o emprego e, sem trabalho, acumulam-se as contas e as prestações da casa ou do carro vão ficando por pagar.

A este respeito, Carlo Martins diz que ninguém imagina o número de famílias que estão neste momento a passar por grandes dificuldades.

É a chamada “pobreza envergonhada” que cresce a cada dia e a quem a “Hotelaria Madeirense ajuda a nossa ilha” tem vindo, desde o último ano, a estender a mão.

“A classe média está a viver num sufoco”, alerta o empresário, salientando que o fim das moratórias agravará ainda mais as situações das famílias.