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Apr 13, 2021 - 7 minute read

Médica com doença rara ‘conhece’
a morte mas foge dela há 18 anos

“A doença deixou-me surda, espalhou tumores pelo corpo, deformou-me. Falo a arrastar. Tirou-me forças. 
Tentou arrancar-me a minha vontade de viver”, diz ao JM. E acrescenta: “matou-me filhos! Mas não me tirou a vontade de viver!” Neurofibromatose 2  Carla Ribeiro

“Sou a prova de que é possível sobreviver ao fim do mundo e acreditem que o meu mundo já implodiu vezes sem conta…”, esta uma passagem do livro ‘Acreditar e Vencer- A médica que superou a morte’ e que testemunha, ao pormenor, a vida de uma profissional madeirense, natural do Paul do Mar, debilitada por uma herança genética extremamente rara – a neurofibromatose 2 - que lhe surgiu na vida quando tinha apenas 22 anos. Precisamente na altura em que o pai faleceu, em 2005. Filha, neta e sobrinha de três médicos, Luísa Abreu dos Santos [ assim se chama este ‘furacão’ de mulher], fez também da medicina a sua missão, exercendo, atualmente, no Centro de Saúde de Santo António, onde encontra, nos seus pacientes, uma força enorme para continuar a lutar, de todas as formas e feitios, contra a morte que, de vez em quando, teima em se aproximar e até empurrar a paulense para o leito de uma cama. Mas, vamos por partes. Era um domingo. O único dia da semana que Luísa Abreu dos Santos tem mais tempo para conviver e fazer tarefas que vão para além da sua atividade profissional e das sessões que tem de realizar, diariamente, para atenuar os efeitos dramáticos da sua doença. A simpática médica recebeu-nos em sua casa, no Funchal. Apesar das dificuldades de mobilidade, ditadas pela débil saúde, fez questão de descer o prédio [de elevador] e de nos receber à entrada principal. No elevador, cumprimos a etiqueta respiratória mas, já dentro da casa de Luísa Abreu dos Santos, tivemos que ‘infringir’ regras. É que a neurofibromatose 2, que a médica descobriu aos 22 anos e escondeu da mãe, durante algum tempo, para não a fazer sofrer, é surda. Completamente surda. E precisa de nos ler os lábios para poder responder às nossas perguntas. Ainda antes da conversa começar, avisou-nos que tem muita sensibilidade à luz e que, por isso, precisava de ficar numa cadeira com as costas voltadas para a rua. Escolhido o melhor local para a conversa decorrer o mais confortavelmente, Luísa Abreu dos Santos começou a contar a sua história, a qua, acreditem, é repleta de tragédias. Ainda assim, sorri. Não deita uma lágrima. Nem sequer quando fala de um grande sonho: o de ser mãe. Luísa Abreu dos Santos tem dois embriões numa clínica a aguardar autorização para que os possa enviar para a Ucrânia para serem estudados. Já teve planos de ter um filho através de uma barriga de aluguer. Até já tinha uma mulher que se ofereceu para ‘carregar’ no útero a sua criança. Mas tudo foi por água abaixo com a lei que, em 2018, veio proibir essa possibilidade. Luísa Abreu dos Santos não pode gerar o seu filho, pois os tumores espalhados pelo corpo podem rebentar e provocar-lhe a morte. A médica teve uma infância muito feliz e, tal como a maioria das crianças, era irrequieta. Tem dois irmãos, dos quais fala como muito orgulho: o João e o Maurício. É o primeiro que cuida do património que ainda existe no Paul do Mar. É também ele que a leva ao mar para a médica poder sentir a leveza do corpo que se encontra completamente combalido por causa da doença. Foi na universidade que começou a ficar surda. Primeiro, de um ouvido. Depois, dos dois. Surdez que se agravou com a morte dos pais, os quais evoca, várias vezes, na conversa que tem connosco. Foi também na universidade que perdeu muito peso e, através de vários exames médicos, descobriu a dura realidade. Pensou várias vezes em desistir do curso. Mas a mãe, seu grande pilar, incentivava-a a tentar concluir. E com muita força e dedicação, Luísa Abreu dos Santos concluiu aquela que foi uma promessa feita à progenitora. A médica no Centro de Saúde de Santo António diz-nos que passou a maior parte da vida adulta a se deitar e a levantar de dezenas de camas de hospitais. Levanta a mão. E conta. “Fui submetida a cinco grandes operações: duas nos Estados Unidos, uma no Reino Unido e duas em Portugal”, especifica. Mas depois lembra-se de outras cirurgias que considera pouco relevantes em termos de trauma e dor. Mostra as mãos, de onde têm sido tirados pequenos tumores. Com apenas 40 anos, a médica está em paliativos. “A doença deixou-me surda, espalhou tumores pelo corpo, deformou-me. Falo a arrastar. Tirou-me forças. Tentou arrancar-me a minha vontade de viver”, diz ao JM. E acrescenta: “matou-me filhos!”, sem prescindir de levar um copo de água à boca, como se o líquido a ajudasse melhor a engolir a dor. A neurofibromatose 2 é uma doença genética rara, autossómica dominante. Ou seja, há uma maior probabilidade de passar de pais para filhos. E de todas as vezes que Luísa Abreu dos Santos tentou ter uma criança, veio a descobrir que o feto estava com a doença. “É muito duro. Muito duro!”, adianta-nos, deixando cair uma leve lágrima e quando já estamos completamente ‘rendidos’ à história desta mulher que não é gato mas parece ter sete vidas. Ou talvez mais… Mais impressionante é o sorriso que expressa em cada intervalo para uma pergunta. Ainda mais cativante é o facto de se preocupar com quem a está a entrevistar. “Já passei por tanto que muitos céticos começaram a acreditar que, se calhar, os milagres existem”, adianta. Expressão que podemos também encontrar no livro que decidiu escrever, há dois anos, para testemunhar aquilo que tem vivido: a luta desigual com o monstro que a Neurofibromatose 2. Já esteve “perto da morte várias vezes mas os meus pais estavam lá. Acredito que são eles que não me deixam ir ainda ter com eles”, conta visivelmente emocionada. O pai de Luísa Abreu Santos morreu novo e deixou a mãe, de 49 anos, com três jovens ainda em idade escolar. A dor foi tão grande que começou a perder a audição. Estava a estagiar em medicina interna. Foi observada por um otorrinolaringologista. Nada detetaram. Depois de dois exames de ressonância, recebeu a notícia que tinha montes, montes de tumores bilaterais. “Pedimos que considere os cuidados paliativos”, disse-lhe o médico, na altura. Luísa Abreu dos Santos chorou, gritou e implorou pela ajuda do pai, já falecido. E foi a ajuda deste e, posteriormente, também da sua mãe, que a fizeram percorrer o caminho que fez até agora. E que pretende prosseguir. Ao mesmo tempo que se sente derrotada por um monstro insaciável, a médica também se sente abençoada. Tem conseguido fintar a morte tanta vez. E isso mesmo transmite aos seus pacientes, embora assegure que cada um tem os seus problemas. “Eu não posso minimizar o problema do meu paciente só porque sou muito doente. Eu entendo todos os problemas dos meus pacientes. E entendo a dor de cada um. Não posso fazer comparações”, declara a médica que garante já ter deixado de se sentir revoltada com o mundo, furiosa com Deus. A única coisa que desejava, neste momento, era poder ser mãe através de uma barriga de aluguer. “Era legal e deixou de o ser”, relembra. Considerando que a espiritualidade é essencial, Luísa Abreu Santos diz estar certa que, um dia, estará ao lado dos pais, agradecendo-lhes o facto de terem velado por si. “Essa é a minha grande esperança”, afirma, enquanto esfrega uma na outra mão, massajando as zonas que lhe causam dor. A médica de família queria ser exatamente uma mãe igual à sua, a quem chamava de ‘Mumis’ e chegou a confessar não merecer viver por não ter a força nem da progenitora nem do pai. “Amanhã é outro dia e será melhor com certeza, coração de melão!”, respondia a mãe de Luísa Santos Abreu, cujas palavras, a debilitada médica agarrava com unhas e dentes. E foi pela mãe e pelo pai que nunca desistiu. Mantendo esperança numa cura para uma patologia tão rara, a Médica conta que passou já pelos cuidados paliativos. Foi no ano passado, no hospital dr. João de Almada. Durante o seu internamento, percebeu que, de facto, o mais importante é viver um dia de cada vez, rodeada de amor, carinho e proteção. E isto não lhe falta. Nem da parte do companheiro, nem da parte dos irmãos, nem de todos os amigos, familiares e vizinhos. “Força nas canetas!”, pediu ao se despedir da nossa reportagem, empunhando o dedo, a reforçar o desejo de boa sorte. Uma mulher cheia de problemas mas que, a todo o momento, quer cuidar dos outros.