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Feb 14, 2021 - 8 minute read

Dez passos decisivos que moldaram a Autonomia

A partir de 1976, os madeirenses passaram a dispor de um conjunto de poderes que até então nunca tinham experimentado. Mas a nossa autonomia não foi feita da noite para o dia. Foi preciso muita resiliência e determinação para chegarmos até aqui. Conversámos com Guilherme Silva, um dos madeirenses que mais tem trabalhado nesta área, e reunimos 10 passos que foram decisivos para a nossa afirmação coletiva.1 A Constituição da República Portuguesa de 1976 veio a reservar um título próprio às Regiões Autónomas, consagrando o princípio da autonomia política e administrativa, que viria a ter como seus pilares fundamentais a Assembleia Legislativa e o Governo Regional.2 O artigo 228.º da Constituição previu, desde logo, os estatutos político-administrativos e a forma de os elaborar e aprovar, disposição esta a que veio a ser aditado um n.º 4, a quando da revisão de 1982, tornando expresso que a mesma tramitação se aplica também às suas alterações.Na revisão constitucional de 1989 apenas foi introduzido, no artigo 228.º, a alteração decorrente da circunstância de as “Assembleias Regionais” terem passado a designar-se por “Assembleias Legislativas Regionais”.
 A Constituição de 1976 continha, porém, na sua versão originária e entre as suas disposições transitórias, preceito que estabelecia o seguinte: ‘Até 30 de Abril de 1976, o Governo, mediante propostas das juntas regionais, elaborará por decreto-lei, sancionado pelo Conselho da Revolução, estatutos provisórios para as Regiões Autónomas, bem como a Lei Eleitoral para as Assembleias Regionais’; e ainda ‘Os estatutos provisórios das Regiões Autónomas estarão em vigor até serem promulgados os estatutos definitivos a elaborar nos termos da Constituição’.Foi em cumprimento do preceito constitucional transcrito que, através do Decreto-lei n.º 318-D/76, de 30 de Abril, foi aprovado o ‘Estatuto Provisório da Madeira’.3 Foi este estatuto provisório que vigorou até à aprovação na Assembleia da República do estatuto dito definitivo - Lei nº 13/91 -, através de proposta da Assembleia Legislativa da Madeira. Anteriormente tinham sido presentes à Assembleia da República pela então Assembleia Regional da Madeira duas propostas, em anteriores legislaturas, que se destinavam à aprovação do Estatuto Político-Administrativo. Sucede que, por razões de inconstitucionalidade, num dos casos, conforme declaração da Comissão Constitucional/Conselho da Revolução, e por razões de termo da legislatura, noutro, não foi concluído o processo legislativo conducente à aprovação do estatuto.  “Muito embora a Constituição não fixasse prazo para a elaboração dos estatutos ‘definitivos’ das Regiões Autónomas, havia quem sustentasse que a abstenção quanto ao desencadear do processo necessário à sua aprovação e, consequente prolongamento da vigência do estatuto provisório, poderia envolver inconstitucionalidade por omissão”, recorda o antigo deputado à Assembleia da República Guilherme Silva. Foi esta a posição perfilhada pelo deputado Almeida Santos, a quando do debate da revisão constitucional de 1989, na CERC. Em idêntico sentido se pronunciaram os professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua Constituição Anotada. “Temos para nós que, tal tese, embora hoje ultrapassada, nunca podia, face ao princípio constitucional da autonomia, que envolve também a reserva do juízo de oportunidade da iniciativa estatutária, por parte das Assembleias Legislativas Regionais, ter qualquer sentido ou pertinência”, acrescenta o também antigo vice-presidente da Assembleia da República e um dos madeirenses que mais trabalho produziu no processo de descentralização de poder para a Madeira. Durante o processo de discussão e aprovação da Proposta de Lei 135/V de que resultou a Lei nº 13/91, ocorreram algumas vicissitudes que Guilherme Silva agora recorda. Assim, e após a sua aprovação pelo plenário da Assembleia da República, o Presidente da República suscitou a apreciação prévia da inconstitucionalidade de dois artigos, o que deu lugar ao acórdão nº 1/91 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou pela inconstitucionalidade de dois pontos daquele decreto, referentes ao Círculo da Emigração. Em reunião plenária da Assembleia da República, em fevereiro de 1991, foram expurgadas as disposições declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional (TC). Porém, o Presidente da República de então, Mário Soares, face à circunstância de o TC não ter considerado inconstitucional outros pontos suscitados, “usou, em condições discutíveis, do seu direito de veto, obrigando à alteração daquela disposição”, afirma.4 Através da Proposta de Lei nº 234/VII apresentada pela Assembleia Legislativa Regional à Assembleia da República, foi possível aprovar uma nova e avançada versão do Estatuto Político-Administrativo da RAM – a Lei nº 130/99, de 21 de Agosto, que se mantém.“Trata-se de um diploma fundamental e estruturante da autonomia política regional”, considera o antigo Guilherme Silva. Entretanto, foi aproveitado o estatuto e as suas “importantes potencialidades” para a concretização efetiva da Autonomia, implementando a mediação legislativa nacional e regional que se foi mostrando necessária.5 Apesar de o artigo 229.º incluir como limite à competência legislativa regional as leis gerais da República, “a verdade é que só com a segunda revisão em 1989 foi definido o conceito de leis gerais da República ‘como as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolve a sua aplicação, sem reservas, a todo o território nacional’”, elucida.Ao fim e ao cabo “acolheu-se no texto constitucional o conceito de leis gerais da República que a própria Comissão Constitucional vinha fixando na sua jurisprudência”, não sendo adiantado muito mais neste particular das competências legislativas das Regiões, na revisão de 1982. Já não foi assim na revisão de 1989 em que se inseriram duas novas alíneas ao art.º 229º, as alíneas b) e c), que alargaram as competências legislativas das Regiões. Com efeito, sobre os poderes das regiões autónomas,  passou a figurar: ‘Legislar, sob autorização da Assembleia da República e com respeito da Constituição, em matéria de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania’, e ‘Desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g), n), v) e x) do nº 1 do artigo 168º’. Curiosamente, até hoje, nenhuma das duas Assembleias Legislativas Regionais fez uso da figura da Lei de Autorização Legislativa.6 Na revisão de 1997 as competências legislativas regionais alargaram-se. Assim, deixou de ser imposta a subordinação às leis gerais da República, mas tão só aos princípios fundamentais das leis gerais da República.“Tratou-se, a nosso ver, de um avanço importante, já que as Assembleias Legislativas Regionais deixaram, então, de, no exercício da sua competência legislativa, estarem obrigadas a respeitar as expressões e as vírgulas das leis gerais da República, tal qual o exigia o Tribunal Constitucional na sua jurisprudência, tradicionalmente restritiva em matéria de autonomia”, explica. Continuava, porém, a poder ultrapassar-se por via da Lei de Autorização os próprios princípios fundamentais das leis gerais da República. Por outro lado, passou, então, a ser exigido que para um diploma nacional (lei ou decreto lei) poder ser considerado Lei Geral da República, que, para além da sua razão de ser envolver a sua aplicação a todo o território nacional, também assim o decretasse. Perante a falta de um dos dois requisitos, não estávamos perante uma Lei Geral da República. “Esta norma acabou por registar uma aplicação perversa e o legislador, em particular o Governo, passou a ‘chancelar’, abusivamente, a maior parte dos diplomas como “Leis Gerais da República”, o que revela bem que se mantém ainda nas cúpulas do Estado uma tendência centralizadora”, considera. Por sua vez, no art.º 228º passou a elencar-se um núcleo duro de matérias de interesse específico, não sem deixar uma dupla cláusula aberta, através de um “designadamente” inserido no corpo do artigo e de uma alínea final - a alínea o), - que considerava ainda de interesse específico - “certas matérias que digam exclusivamente respeito à respetiva Região ou que nela assumam particular configuração”. Era este, em termos gerais, o quadro constitucional que até à revisão constitucional de 2004 fixava os parâmetros e os limites a que se subordinava as Regiões Autónomas.7 Em 2004, foi eliminada a figura das chamadas Leis Gerais da República, pelo que os diplomas regionais não têm que se subordinar a tais diplomas, nem sequer aos princípios fundamentais que nelas se continham.Melhor dizendo, adianta Guilherme Silva, “o limite é a Constituição e a competência própria e reservada dos órgãos de soberania (Assembleia da República e Governo)”.Mas quais foram os contornos de relevo do poder legislativo regional desde a versão inicial da Constituição de 1976?Com a revisão constitucional de 2004 deram-se passos particularmente importantes no aprofundamento e alargamento da autonomia e em especial na vertente legislativa, ou seja, no tocante às competências da Assembleia Legislativa.8 No domínio da reserva relativa da Assembleia da República, às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, como passaram a ser designadas em 2004, podem ser concedidas autorizações para que legislem para a respetiva Região, nos mesmos termos e condições que a Constituição prevê para o Governo da República, embora com exclusão de algumas matérias.9 Por outro lado, deixa de ser imposta a exigência do “interesse específico”, conceito que pela sua vacuidade, deu lugar a jurisprudência do Tribunal Constitucional muito restritiva das autonomias regionais.“Está assim colocado um grande desafio às Regiões Autónomas e aos seus parlamentos - a construção de um direito regional que, embora subordinado à Constituição, marque as nossas diferenças e dê resposta às especificidades próprias da nossa Região”, defende Guilherme Silva.“Se soubermos aproveitar devidamente as potencialidades abertas com as alterações Constitucionais de 2004, podemos marcar uma nova era no fortalecimento dos órgãos de Governo próprio, pela afirmação das suas competências, concretizando a autonomia legislativa”, considera.10 A par da competência legislativa, assume importância relevante e também emblemática, a questão do ministro da República que, por força da revisão de 2004, passou a designar-se representante da República.